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Na Esplanada com Dr. António Gentil Martins


António Gentil Martins é um notável cirurgião português. Nasceu em Lisboa, no dia 10 de Julho de 1930 e liderou várias operações de separação de gémeos siameses. Foi bastonário da Ordem dos Médicos, campeão nacional e atleta olímpico na modalidade de tiro. Recebeu-nos no Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil, em Lisboa.

- O que é que as pessoas não sabem sobre o Professor António Gentil Martins?
Não faço a mínima ideia. Saiu agora um pequeno livro que é um bocadinho a minha história. Poderão saber talvez que eu fui presidente da Ordem dos Médicos, porque tive durante 10 anos a discutir com os Ministros todos, portanto nessa altura aparecia muito. Sou cirurgião aqui há 61 anos e fui na Estefânia 40 anos mas reformei-me e não me deixaram continuar. Na faculdade tive 16 anos e também não me deixaram continuar. Como eu criei aqui o primeiro serviço no mundo multidisciplinar para cancro na criança, o ministério autorizou que o reformado Gentil Martins continuasse.

- Quais foram os momentos mais marcantes da sua infância?
É complicado de dizer. Eu tinha 3 meses quando o meu pai morreu, portanto foi sempre a minha mãe o suporte de toda a minha educação. Lembro-me concretamente da desilusão que eu tive quando soube que não existia o Pai Natal e que era a minha mãe quem me dava os brinquedos. Eu sabia que isso era um enorme sacrifício para ela porque eu, como criança, queria imensa coisa. Recordo-me de entrar para o liceu, e de entrar para a faculdade. Não tenho assim coisas muito especiais. Fiz sempre desporto durante a minha infância, e acho que isso ajudou muito para que eu hoje esteja bem.

- Que importância teve para a sua vida os anos que passou em Inglaterra?
Foram absolutamente fundamentais. Eu tinha a preocupação de vir de lá completamente independente, e a poder tomar as minhas decisões por mim e não ter de estar a pedir opiniões de outras pessoas. Trabalhei 3 anos e meio em escravatura total, não tive férias, não vim a Portugal, estive sempre lá. Acho que foi extraordinário, adorei o trabalho, foram pessoas excepcionais comigo. As duas coisas que eu não gostava, como é evidente, era o clima e a comida. Tive a sorte de poder trabalhar com as melhores pessoas do Mundo na altura. Quando cheguei à conclusão que já estava tudo bem muito obrigado, vim para Portugal. Ainda tive um convite para ir para o México trabalhar mas eu era português e o que eu sabia era para fazer cá. Poderia fazer muito dinheiro, mas isso nunca foi prioridade.

- Como cirurgião pediátrico, a sua ligação às crianças já não é segredo nenhum. No caso das crianças com cancro, o que é que nós temos a aprender com elas?
Eu acho que são muito mais simpáticas que os adultos, têm uma sensibilidade muito maior. São muito espontâneas, são muito verdadeiras. Quando vejo uma criança triste fico logo preocupado, mas se vejo uma criança bem-disposta já sei que ela não tem nada. Relativamente às crianças com cancro, temos mais a aprender com a verdade delas. Adaptam-se às situações com mais facilidade que os adultos. Uma vez veio cá um pai entregar uma carta que a filha escreveu antes de morrer. Ela pediu ao pai “Quando eu morrer, o pai não se esqueça de ir entregar esta carta no Instituto, a agradecer aos médicos e às enfermeiras o que fizeram por mim enquanto eu lá estive doente”. Eu achei isso uma coisa fabulosa.

- Já foi pioneiro em diversos tipos de cirurgias, como é o caso da separação de siameses e a operação a um doente que tinha tumores no rosto. Como é que se sentiu antes e depois dessas operações?
Tirei-lhe a pele da cara toda de uma vez. Mas não havia outra alternativa porque a criança tinha cancros por todo o lado. Nunca se tinha feito, mas ou eu o deixava morrer, ou tentava. É claro que não ficou muito bonito, ficou cheio de cicatrizes na cara, mas ficou funcional. Morreu com 35 anos. Nos siameses, na primeira eu senti um terror desgraçado porque sabia que se desse um passo em falso já não voltava atrás. Fui com muito cuidado porque era uma coisa complicada. Demorei 12 horas nessa operação. Depois dessas operações há uma sensação de alívio e de satisfação, no fundo porque é uma pequena vitória que nós temos.

- Na sua opinião, o trabalho de um cirurgião plástico é de alguma forma parecido com o de um artista?
É sem dúvida. Sempre gostei muito da parte estética. Transformar o feio em bonito é uma coisa que é agradável. Ter a sensação de que mudei uma coisa para melhor.

- Diz que ainda não conseguiu mudar o Serviço Nacional de Saúde, mas que não desistiu. O que é que ainda falta mudar?
É uma coisa muito simples, eu quero liberdade de escolha. O Serviço Nacional de Saúde que temos, que é bom e tem muitas coisas boas, não tem liberdade. Pergunte a qualquer pessoa, sobretudo de uma certa craveira e que é um grande defensor do actual Serviço Nacional de Saúde, quando está doente onde é que vai? Se ao Centro de Saúde do sítio onde mora, ou se vai ao médico amigo que ele conhece e em quem tem confiança. Todos vão ao médico amigo. Além disso, Bismarck criou o primeiro Serviço de Saúde Social, através de um Seguro Nacional de Saúde, que é o que eu defendo para cá. É um seguro em que todos têm de pagar porque é obrigatório, mas que se distribui para dar saúde a toda a gente. Na minha opinião, a base tem de ser igual para todos. É curioso que alguém que já foi ministro, agora já diz que o ideal é um Seguro Nacional de Saúde obrigatório. Achei muita graça a essa posição atual porque andei sempre em desacordo com ele quando ele era ministro. Só não fala em liberdade de escolha; esqueceu-se desse pormenor.

- Quando em 2000 chegou a hora da reforma, ponderou deixar de trabalhar e aproveitar a vida de outra forma?
Nem pensar. O que eu queria era continuar e por isso até insisti em continuar aqui. Na Estefânia não me deixaram, recebem-me muito bem mas não me deixam fazer nada. Na faculdade, chegando aos 70 vim-me embora. Agora é aos 65, mas na altura era aos 70. Em Portugal temos uma coisa muito curiosa, todos nos queremos reformar mais cedo, mas todos vivemos mais 20 anos do que vivíamos. Depois ficam muitos espantados de que não há dinheiro para pagar as reformas e isto e aquilo. Não há hipótese. Eu acho que a idade da reforma tem de ser flexível. Defendo intransigentemente isto.

- Com 84 anos nota que as pessoas já não confiam tanto nas suas capacidades. Acha que existe uma descredibilização profissional relativamente às pessoas mais velhas?
Acham isso de mim porque olham só para o calendário, não me conhecem. É natural, eu até percebo isso. Depois das pessoas me conhecerem aí já não pensam a mesma coisa. Gente nova é óptimo. E não tenho nada contra gente nova; agora é um disparate não aproveitar os velhos e a experiência deles. Os jovens pelo trabalho e os velhos pela experiência.

- Actualmente, ainda gosta de tocar violino? E quanto ao desporto, ainda pratica ténis e tiro?
Não, não. Adoro ouvir música, adoro música clássica. Toquei violino até entrar para a Faculdade de Medicina. Tinha 17 anos, não tinha tempo para tocar violino bem enquanto me preparava para fazer a cadeira de anatomia. E queria tornar-me num bom médico. Relativamente ao desporto, todos os anos tenho de fazer uma prova de tiro porque senão perco a licença. Ando bastante, faço um bocadinho de ginástica em casa para não enferrujar, mas desporto como fazia e de que gostava imenso, hoje em dia faço muito pouco.

- Tendo em conta a maneira como conheceu a sua mulher, acha que estavam destinados a ficar juntos?
Destinados a ficar juntos é algo um bocado vago. Foi o grande apoio da minha vida seguramente. Casei tarde, aos 33 porque queria escolher bem. Tive a sorte de operar um sobrinho dela e foi aí que a conheci. Queria alguma coisa de especial, tinha de valer mesmo apena. Tivemos 8 criancinhas que já não são crianças nenhumas.

- Como é que é um Natal com 8 filhos e 24 netos?
É repartido, nunca se junta. Tenho um filho que está na Ilha Formosa, uma filha na Suécia, outra no México. Mesmo assim, como todos têm sogros e pais, eu não posso monopolizar a família.

- Já decidiu que quer doar o seu corpo à Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa. Como é que lida com a morte?
É uma coisa inevitável, nada a vai impedir. Não tenho pressa nenhuma, mas já sei que ela vem. Assim quando eu morrer ainda posso ser útil, porque eu aprendi imenso a operar nos cadáveres. Hoje em dia as Faculdades de Medicina só têm bonecos. Dar o corpo à faculdade depois de morto, não percebo porque é que não há mais gente a dar.

- Se o mundo estivesse calado a ouvi-lo, o que diria?
Que não pensem uma coisa e digam outra. A partir do momento que tenhamos a ideia de que estamos certos, temos de defender essa ideia e não ser politicamente corretos.
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