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Contos para avós: Antes morta que peso morto


Já lá vai o tempo em que o tema morte nunca me tinha passado pela cabeça. Hoje tenho quase 70 anos, estou reformada e os meus últimos cinco anos de vida têm sido turbulentos. Ou seja, todos os dias pensei que era melhor ter morrido, mas eu vou contar-vos a minha história para que possam acompanhar a minha perspetiva deprimente da vida.

No dia 1 de Janeiro de 2011, eu e o meu companheiro fomos almoçar a casa da minha filha Júlia, a mais nova, para comemorarmos um novo ano em família. Lembro-me de uma casa cheia, muitos risos, conversas interessantes, boa comida e um óptimo vinho. Acabámos por jantar por lá e quando decidimos regressar a casa o relógio assinalava a meia-noite. Talvez já fosse um pouco tarde, mas dias não são dias. Fizemo-nos à estrada, pois 40 km separam as nossas casas, e só queríamos chegar a casa. Enquanto o meu doce Jorge conduzia atento à estrada, eu ia fechando os olhos voltada para ele enquanto sorria. Acabei por adormecer no banco do pendura. Foi a última vez que vi o meu querido Jorge.

Acordei no hospital, cinco dias depois segundo me disseram, e só via máquinas ao meu redor. Entre luzes, sons irritantes e muitas pessoas de bata, só pensava onde é que estou? Sentia-me fraca e parcialmente dorida mas estava tão confusa que por momentos acreditei que aquele aparato médico não era para mim. Ainda não sei se foi naquele dia que recebi visitas, no entanto quando os meus filhos entraram no quarto pela primeira vez a conter as lágrimas soube, naquele exacto momento, que a minha vida não voltaria a ser a mesma.

Após receber a notícia que tinha sofrido uma lesão medular traumática devido a um aparatoso acidente automóvel, onde o meu Jorge tinha perdido a vida, tentei endireitar-me para mostrar força aos meus filhos. Inicialmente nem percebi o porquê de não conseguir. Explicaram-me que tinha sido submetida a três intervenções cirúrgicas e não convinha fazer esforços agora. Uma coisa fantástica de sermos mães é que não precisamos que os nossos filhos falem para os percebermos. A cara da minha filha Júlia dizia tudo. Ela não conseguia evitar olhar na direcção das minhas pernas. Tentei mexê-las e nada. Tentei com todas as minhas forças novamente e nada outra vez. Se eu não estivesse a olhar para elas diria que tinham sido amputadas pois a sensação que dava é que não estavam ali, nem pesadas nem leves, apenas um gigantesco nada. Nesse dia nasceu uma raiva dentro de mim que eu não conseguia controlar, mas sinceramente também não queria. Sabia que ia tornar-me num peso morto. Só queria que eles seguissem em frente, sem pena, sem obrigação e vivem-se aquilo que conquistaram.

Passaram-se uns tempos até ao dia em que me deram alta do hospital. Sinceramente não sei quantos dias foram, nem quis saber. Todavia lembro-me perfeitamente de dizer, todos os dias, para acabarem com o meu sofrimento e da minha família. “Antes morta, que um peso morto” passou a ser a frase mais usada no meu vocabulário durante estes últimos cinco anos. Antes de abandonar o hospital, para grande alívio das auxiliares e enfermeiras, uma auxiliar na casa dos 30 anos chegou perto de mim e disse-me: “Dona Lúcia você não é a primeira nem a última pessoa paraplégica do mundo, habitue-se há ideia que não voltará a andar e pare de fazer a vida dos outros num inferno. Talvez deixe de ser tão amarga e aprenda algo com isso!”. Engoli em seco e não respondi. Cá entre nós não condeno a rapariga, pelo contrário eu estava a merecer uma frase daquelas, provavelmente uma até pior.

Os meus filhos adaptaram-me a casa, remodelaram tudo para que eu conseguisse ter total acesso com a minha cadeira de rodas ao que quisesse. Os meus filhos são a imagem mais próxima que eu tenho dos anjos. Sempre a fazerem o bem, 24 horas preocupados com outros, e com uma paciência que dá inveja aos santos. É claro que no meu egocentrismo da altura nunca lhes agradeci tudo o que fizeram por mim, limitei-me a dizer que devia ter morrido com o meu homem. Tornei-me naquelas velhas insuportáveis, que odeiam a vida com todas as suas forças e que só esperam que a morte as leve. Não suportava a ideia de ser um peso morto na vida deles, sempre temi isso e tinha que acontecer. E esta velha foi assim até ao dia 1 de Janeiro de 2016.

Os meus filhos passaram a festejar todas as datas especiais em minha casa, porque eu recusei-me a tudo aquilo que eles propuseram ao longo de cinco anos. Tinha aquela esperança que um dia eles deixassem de me convidar, mas não, as festas vieram ter comigo.

No dia 1 de Janeiro deste ano, prepararam uma festa mais humilde pois sabiam o que aquela data significava para mim. Depois do almoço a minha neta Matilde, que tem 14 anos, sentou-se ao meu lado e deu-me um copo de vinho às escondidas. Ela falou comigo baixinho para que ninguém pudesse ouvir. “Avó eu sei que a tua vida não é muito boa, que odeias essa cadeira, que não consegues ser feliz assim. Mas eu estivesse a ler e acho que se quiseres tu podes voltar a andar. Não vai ser fácil, não sei se vais conseguir, mas tu própria dizes que preferes morrer a estar assim, logo o que é que tens a perder?”. Sorriu-me matreiramente, piscou-me o olho e foi ter com os meus outros netos.

 Permaneci calada até todos saírem. Mas nessa noite uma inquietação descontrolada não me deixava dormir. “E se a miúda está certa? Nunca ninguém referiu o voltar a andar… Porquê?”. E cada vez apareciam mais perguntas. Pensava tão rápido que o relógio parecia ter acelerado os ponteiros de tal forma que o sol estava a nascer. Pela primeira vez esforcei-me para sentar-me na cama. Não vos vou mentir, eu achava que se eu quisesse conseguia ir para a cadeira de rodas sozinha, no entanto nem sentar-me na cama consegui. Liguei para a minha neta inconscientemente, mas não falei. E não é que os avós também não precisam de dizer nada para os netos os perceberem. Ela disse do outro lado da linha, avó eu sabia que ias mudar de ideias vou ligar à mãe. Nem tive tempo de dizer para ela não fazer isso, porque a Matilde desligou-me o telefone na cara. Esperei mais uma vez pela enfermeira que os meus filhos contrataram para cuidar de mim, para que me colocasse na cadeira e ajudasse a fazer tudo.


Perto da hora de almoço a minha filha Júlia veio a minha casa e foi ter comigo.  Falámos a tarde toda. Eu chorei, ela chorou. Abraçamo-nos com força. Ela falou-me da minha condição, explicou-me que afinal eu era paraplégica parcialmente, tinha algumas lesões sim, mas havia hipóteses de eu voltar a andar, claro que tinham que fazer um novo diagnóstico. Acho que um dia chegaram a falar comigo sobre isso e eu nem ouvi. Tudo porque tinha desistido. E para voltar a andar eu tinha que ser mais forte que nunca. Perdi 5 anos da minha vida a lamentar-me e a odiar o mundo, quando já podia ter progredido tanto. Só que não dá para voltar atrás. Estou a aprender tudo novamente e já nem me sinto um peso morto. O caminho é longo, mas a determinação é maior ainda. Sei que vou morrer um dia mas nos meus sonhos eu caminho lentamente até ao meu querido Jorge no nosso reencontro, e eu quero treinar esses passos em vida. 

Por: Natacha Figueiredo
Contos para avós: Antes morta que peso morto Contos para avós: Antes morta que peso morto Reviewed by Unknown on 05:58:00 Rating: 5

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