Quão bom seria vivermos num país que valorizasse as
capacidades artísticas, a vontade, dedicação e sabedoria das pessoas mais
velhas, trabalhando-as, moldando-as e aproveitando-as numa companhia de teatro?
Não seria óptimo? Melhor ainda, já é! Chama-se Companhia Maior, tem residência
no Centro Cultural de Belém e é composta por artistas com mais de 60 anos. Como
não podia deixar de ser, fomos conhecê-los.
Foi Luís Moreira, o produtor da Companhia Maior que nos
recebeu, acompanhado por Carlos Fernandes, um dos 24 atores da companhia.
Seguimo-los até ao bar dos artistas, um espaço reservado onde podíamos
conversar sem distracções e nessa zona reservada aos artistas, já lá estava
Júlia Guerra, atriz de 83 anos, que a convite do produtor esperava-nos para dar
o seu testemunho sobre si e sobre a Companhia Maior, a que também pertence.
Moveu-nos a curiosidade de saber o que é que fazia com que Júlia Guerra, de 83
anos parecesse quase 20 anos mais nova, e quando nos explicou a forma como entrou
para a Companhia, percebemos logo o segredo da sua jovialidade. É que Júlia
claramente não é uma pessoa que goste de estar sem nada para fazer. Não fosse
essa sua vontade por aprender, criar, fazer, e talvez nunca tivesse entrado na
Companhia Maior. Está lá desde 2010, quando esta foi criada. Acompanhou os
primeiros passos da companhia, e também fez parte deles.
Tudo nasceu do sonho de Luísa Taveira, ex-bailarina da
Companhia Nacional de Bailado, companhia onde hoje é directora artística.
Segundo Luísa Taveira “O cerne do projecto
desta companhia é o aproveitamento da experiência acumulada de artistas oriundos das diversas vertentes das artes performativas.
Trata-se de valorizar a maturidade, os saberes forjados e aperfeiçoados ao
longo do tempo e o intenso desejo de comunicar desta fase da vida, em que a
reflexão e a ponderação já tiveram mais espaço para vaguear, mais tempo para
duvidar, equacionar, concluir”. Foi após um workshop
gratuito e intensivo de teatro organizado por Tiago Rodrigues que surgiu a
oportunidade de dar continuidade ao que lá se tinha aprendido e Luísa Taveira
de realizar o seu sonho. Surgiu assim, em 2010 a Companhia Maior.
Foi a sua curiosidade e esse workshop que abriu a porta
para que Júlia se tornasse na atriz profissional que é hoje. “O CCB é a minha segunda casa. Fiz aqui um workshop de dança
contemporânea, porque gostava muito da dança clássica, mas não compreendia a
contemporânea, então fiz um workshop, não para me tornar uma bailarina, mas
para ser uma melhor espectadora. Então vi no folheto do CCB que ia haver um
workshop de teatro para pessoas maiores de 60 anos. Já fiz tantos workshops,
dança, fotografia, vou aproveitar também” diz-nos a atriz. Júlia Guerra
é o exemplo de como compensa contrariar a ideia de que a idade tem um peso,
manter a o cérebro e o corpo ativo. Sem essa maneira de estar na vida nunca
teria ido ao workshop, e de certeza absoluta, não teria a jovialidade que
demonstra ter. Esta maneira de estar herdou-a de seu pai, que foi ator de
teatro e com quem aprendeu muita coisa. “Ele pelo gosto
de passar a mensagem, eu pelo louco interesse em recebê-la” confidencia-nos
ao referir-se à influência que o pai teve na pessoa que hoje é.
Apesar da profissão artística do pai, até à Companhia
Maior só tinha feito teatro radiofónico, pois foi na rádio que fez grande parte
da sua carreira. Conta-nos que, na altura, ainda chegou a receber dois convites
para integrar o teatro profissional, mas que o marido pediu-lhe para que não
fosse. “Se ele tivesse dito “não vás porque eu não quero” eu ia logo” afirma de
forma convicta. Mal Júlia podia imaginar, quando acedeu ao pedido do marido
que, aos 83 anos faria parte duma companhia de teatro profissional. Foram 10 dias intensos de workshop, de manhã e
à tarde. “No fim do workshop tivemos um almoço de confraternização onde estavam
várias pessoas, inclusive a Luísa Taveira e disseram-nos que quem quisesse que
fosse abrir actividade porque estava formada a Companhia Maior” explica-nos
Júlia Guerra.
A primeira peça feita e encenada por Tiago Rodrigues foi
“A Bela Adormecida”, estreada no dia 28 de Outubro de 2010 no CCB, com um
elenco de 14 elementos, todos acima dos 60 anos.
Ao contrário de Júlia Guerra, Carlos Fernandes não
integrou a criação da Companhia Maior. Quando entrou já a companhia estava
criada há 3 anos. Assim como a colega, a sua profissão foi na rádio, mas
aproveitou para seguir a sua paixão pelo teatro. Hoje, com 71 anos é ator
profissional, mas esta paixão vem desde sempre. Nasceu em Angola, e quando lá
iam as companhias portuguesas de teatro, aproveitava todas as oportunidades que
tinha para assistir às peças. E se é verdade que Deus escreve a direito por
linhas tortas, então a sina de Carlos Fernandes estava bem explícita nas
entrelinhas do destino escritas por Deus. Homem de poucas palavras, na rádio
trabalhou como sonorizador. “Na rádio trabalhei com os
grandes nomes do teatro, como o Ruy de Carvalho, a Eunice Muñoz, Carmen
Dolores, Manuela Maria, Armando Cortez e muitos outros” diz-nos. Mas foi
apenas quando se reformou que pisou os palcos. Encontrou a Nova Morada, uma
companhia de teatro amador em Paço de Arcos, e lá ficou 9 anos, até que em
2013, abriram audições para integrar a Companhia Maior. “Fui convidado, e também já tinha estado no teatro amador e queria
experimentar o teatro profissional. Também já tinha visto peças deles e tinha
gostado. Participei na audição, fui aceite e pronto, cá estou na companhia” explica-nos
o ator. Revela-nos que nunca recusou fazer nenhum papel nem nenhuma peça, que o
seu amor ao teatro sobrepõe-se a qualquer critério de escolha. Na Companhia
Maior está à 2 anos, mas já fez 3 peças, sendo a “Força” a mais recente, “Um de
Nós” no Maria de Matos, e em França integrou o elenco de “Estalo Novo”
apresentado no MA scène national em Montbéliard. “Estar na Companhia Maior e
trabalhar com este grupo é óptimo. Quando eu estava na Nova Morada era malta
espectacular mas era uma companhia amadora, só ensaiávamos à noite quando a
malta deixava os empregos e tinha hipótese de ir fazer teatro. Aqui é a mesma
coisa mas como é profissional trabalhamos muito mais. Para a “Força” andámos a
ensaiar 2 meses e meio, das 10 da manhã às 16h, e uma semana antes de
estrearmos era até às onze da noite. “Qualquer sala é
óptima para representar e eu desde que consiga e esteja bem é no teatro que me
continuarei a ver” termina Carlos Fernandes.
Mas, para que a Companhia Maior seja uma máquina bem
oleada estão as mãos e o empenho de Luís Moreira, o produtor da Companhia. A
arte fica para os artistas, mas não seria possível sem tamanha dedicação do
produtor, outrora bailarino da Companhia Nacional de Bailado. Sendo ele o homem
por detrás das cortinas, é quem passa despercebido quando os espectáculos são
exibidos, mas está na linha da frente no fazer acontecer. Segundo Luís Moreira,
numa companhia de teatro que já tem perto de 6 anos, o maior desafio artístico
é conseguir ter um melhor nível performativo, por parte dos atores, encenadores
e das pessoas que dirigem as obras e espectáculos da companhia. “Mas o grande desafio é inerente a estas questões da
cultura com orçamentos muito baixos, ou seja, é a ginástica que tem que ser
feita para se conseguir produzir mais, com o mínimo de recursos possíveis” diz-nos
o produtor. Esse é um drama comum dos artistas em Portugal, e como muitas
outras, a Companhia Maior não tem quaisquer apoios estatais. Apesar da fé na
criação do novo Ministério da Cultura, Luís Moreira reconhece que, o único e
verdadeiro apoio que têm é do CCB, que lhes dá residência e que lhes permite
que tenham anualmente uma produção. “Damos tudo por
tudo e geralmente apresentamos 4 espectáculos” afirma o produtor.
Um outro desafio para Luís Moreira, que identifica-o como
transversal à maioria das companhias de teatro, é o das digressões. É um facto
que frustra tanto produtores como atores, trabalharem meses a fio nas peças e
depois não conseguir apresentá-las pelo país fora. De novo Luís Moreira aponta
para a falta de apoio à cultura e para os baixos orçamentos disponíveis. “Hoje
em dia há muita dificuldade em questões orçamentais para os teatros de
acolhimento poderem acolher peças em digressão, sobretudo quando são peças que
levam 12 ou 18 pessoas como nós temos aqui” afirma. Pagar o trabalho e o
alojamento a 18 atores mais o mínimo de staff necessário não é algo fácil em
Portugal, e para dificultar as coisas, muitas dos teatros que acolhem outras
companhias procuram pagar-lhes dependendo da bilheteira. “Hoje em dia com salas pequenas e bilheteiras bastante
acessíveis não dá sequer para fazer o pagamento do hotel por exemplo” complementa
Luís Moreira, que, de forma a contornar esta problemática das digressões tem
procurado alocar os espectáculos da Companhia Maior na zona de Lisboa, de modo
a que possam fazer ida e volta e evitar o alojamento, reduzindo assim
significativamente os custos.
Carlos Nery de 82 anos é outro dos atores da Companhia
Maior com quem tivemos a oportunidade de falar. Assim como Júlia Guerra, está
na companhia desde a sua criação, mas fazer teatro é algo que acompanha o
antigo funcionário do Banco de Portugal há muitos anos. A primeira vez que
pisou um palco foi em 1951, e desde então pertenceu ao Teatro Experimental do
Porto, ao CITAC em Coimbra e o teatro acompanhou-o até que foi mobilizado para
a Guiné onde admite ter vivido a situação mais marcante que o teatro alguma vez
lhe deu. “No fim da comissão conseguir encenar lá um
espectáculo para militares e com militares. A peça que encenámos foi A Cantora Careca do Ionesco, que depois
de algumas sugestões minhas que encontraram alguma reserva da parte do
responsável, acabámos por optar por uma peça de teatro absurdo. Não deixava de
ter um certo sentido fazer teatro absurdo num teatro absurdo que era a Guerra
Colonial” diz-nos o ator. Segundo o próprio, foi uma peça audaciosa, com
poucos elementos num palco improvisado com mesas de refeitório encostadas umas
contra as outras. Carlos Nery confidencia-nos que, sem quaisquer meios, todos
os soldados com quem falava aderiam com entusiasmo à ideia de ajudarem no
espectáculo como podiam. “Foi uma coisa importante. Num
ambiente de guerra, as pessoas reconheceram que aquele espectáculo de teatro
foi para eles mais importante do que várias semanas ou meses de trabalho com um
psiquiatra. Quem vinha como eu vinha, do mato e de várias de experiências
duras, aquilo foi uma libertação e de fazer uma coisa diferente. Foi mais para
nós do que propriamente para o público, foi muito importante” conclui
destacando este momento como um dos mais marcantes da sua vida no teatro.
Antes da Companhia Maior Carlos Nery já tinha trabalhado
como ator profissional, por exemplo no Teatro da Cornucópia, mas afirma que
desde que pertence à Companhia, que muita coisa mudou na sua vida. “A dada altura pensei que de facto, embora amasse muito o
teatro, tinha perdido o pé, que tinha saído e que era muito difícil voltar a
entrar. Comecei a fazer uns cursos de pintura, pensado que o teatro me estava
vedado, mas com a Companhia Maior algo muito diferente aconteceu. Voltei ao
teatro, e o mais curioso é que a lista de pessoas que eu conheci através da
Companhia Maior é imensa. Hoje em dia, a maior parte das pessoas com quem eu
privo e a lista dos meus amigos atuais são pessoas que eu conheci pelo facto de
estar na Companhia Maior” termina o ator.
A verdade é que a Companhia Maior é uma inspiração por
vários motivos. Para além de todos os atores que lá estão, que procuram manter
uma vida ativa, sobrepondo as suas capacidades, vontades e sonhos à idade,
superando-se eles próprios e por vezes descobrindo que são capazes de fazer
aquilo que achavam impossível, a Companhia Maior enquanto projecto possibilita
a que pessoas como Júlia Guerra siga o sonho de ser atriz, sonho que não pôde
realizar quando era mais nova, que Carlos Fernandes possa fazer aquilo que mais
gosta desde que era criança, tornando-se profissional, e que Carlos Nery
pudesse voltar a fazer teatro quando já pensava que nunca mais iria pisar um
palco. Numa altura em que as questões do envelhecimento ativo e do combate à
depressão e solidão são cada vez mais debatidas, talvez pudéssemos todos pôr os
nossos olhos na Companhia Maior.
FOTOGRAFIAS: ©Companhia Maior | Fotografia de Bruno Simão
Siga a Companhia Maior em: https://www.facebook.com/Companhiamaiorassociacaocultural
COMPANHIA MAIOR: Teatro Para Maiores de 60
Reviewed by Unknown
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04:24:00
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Longa vida a Companhia...!
ResponderEliminarMagnífico Projecto útil, cintilante e iluminado por uma verdadeira paixão pelo teatro tornando-o numa extraordinária prática terapêutica. Só não aplaudo do modo classico porque estas mensagens não têm som. Mas há, felizmente, muitas formas de "aplaudir". E aqueles que nunca aprenderam, que nunca fizeram teatro, que sempre o tiveram como sonho intangível...? Há espaço para eles, por aí?
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