A reforma bateu há minha porta
mais cedo do que esperava. Sempre foi tudo assim, a vida a fintar-me e eu
desorientada sem direcção. Nunca ultrapassei obstáculos apenas desviei-me deles.
Se surgia um problema eu arranjava uma desculpa para continuar a minha vida.
Leio muitas frases sobre aproveitar a vida intensamente, mas eu nunca o fiz.
Sobreviver é mais fácil. Lamentar-me é mais fácil. Arranjar desculpas é tão
mais fácil.
Estou reformada há um ano e tenho
tido vários momentos de introspecção. Penso na vida e nas decisões que tomei ou
melhor nas que eu não tomei. Sou uma viúva com 64 anos que passa grande parte
do tempo sozinha em casa pois os filhos já estão criados e com família. Nunca
soube lidar com a solidão, não sei viver bem comigo. Como é que os outros vão gostar
da minha companhia se eu acho-me completamente desinteressante? E acreditem
nunca tinha pensado nisto até este último ano.
Comecei a pensar na forma como
encaro a vida desde a vinda da minha irmã a minha casa. Em conversa ela
questionou-me sobre o rumo que eu daria à vida, tentou-me encorajar a viver
novas experiências e ser realmente feliz. Quando falámos nem raciocinei nas
minhas respostas. Hoje percebo quando ela me disse “Oh Lena, para de arranjar
desculpas. Se não queres ser feliz tudo bem, agora não inventes desculpas. Tudo
para ti é um entrave, viver bem dá trabalho e tu escolhes sempre o caminho mais
fácil. Por isso é que não consegues ser feliz!”. Eu perante o seu confronto
mudei de assunto.
Mas agora penso e paro para
reflectir nas suas palavras. O conformismo sempre andou de mãos dadas com a
minha postura perante a vida. Se aos 20 eu já me conformava que perdia a
batalha antes de a travar, imaginem como estou depois dos 60. No entanto são as
desculpas que eu arranjo que deixam as pessoas fora de si. Casei com um homem
que tratou-me sempre como uma princesa, todavia o amor nunca desabrochou.
Quando eu questionava interiormente a nossa relação, pensava imediatamente que
estava a ser injusta, que sortuda eu era ao ter alguém que me amasse daquela
forma. E o que seria de mim se me separasse? Claramente ficaria só o resto dos
meus dias, ao menos a minha vida era estável e segura. E os sonhos que eu tinha
outrora… preferi trancá-los numa gaveta. Eu queria ter sido pintora, no entanto
nunca mostrei os meus quadros a ninguém. Ser pintora não traz segurança
financeira e depois certamente que iriam gozar comigo por eu achar que era
artista. Nunca quis trabalhar numa fábrica e foi lá que acabei por me reformar.
Porquê? Era seguro. O meu patrão pagava-me a tempo e horas e não queria
arriscar no desconhecido. Afinal reclamar do trabalho que temos é mais fácil do
que procurar um que nos satisfaça profissionalmente. E foi sempre assim que eu
vivi, meu Deus!
É difícil acreditar nas coisas
que eu digo. Estou reformada e quando me perguntam porque é que eu não faço
isto ou aquilo, tenho sempre uma desculpa sem pensar. Isto sou eu: “Já estou
velha para aprender; não tenho tempo nem vida para ir ao ginásio; e se os meus
filhos precisarem de mim? As viúvas não usam essas roupas; não tenho dinheiro
para essas coisas; agora não, talvez noutra altura”. E o mais ridículo nisto
tudo é que eu sou capaz de dizer todas estas frases em 30 minutos de conversa.
Realmente eu entendo o porquê de não gostar da minha própria companhia.
Finalmente tudo está mais claro
na minha mente. Talvez seja agora que dê início a uma nova jornada. Talvez não,
vai ser agora. Dizem que a reforma pode ser o começar de uma nova vida, e pela
primeira vez estou determinada.
Acordei cedo. Olhei para o meu
roupeiro e comecei a escolher tudo aquilo que eu não queria mais vestir.
Coloquei todas as roupas num saco preto. O pobre roupeiro ficou com um vestido
de padrão florido, dois pares de calças e umas cinco camisolas. Escolhi o
vestido para usar, deixei o cabelo solto e usei um pouco da maquilhagem que eu
tinha guardada. Já não me pintava há mais de 10 anos. Olhei-me ao espelho e
senti-me bem, não me achei bonita mas gostei do que vi. Hesitei um pouco quando
chegou a hora de agarrar no saco. Afinal esta era a minha primeira mudança em
tantos anos, inspirei fundo, agarrei no saco e saí de casa. Fui até à igreja
para doar a roupa, gaguejei tanto que o padre teve que deduzir o que eu queria
fazer. Agradeceu-me gentilmente e eu sai a tropeçar nos saltos altos que não
usava há anos.
Fiquei parada à porta da igreja
com a respiração ofegante. Todo o meu estado emocional era patético, tão
patético que comecei-me a rir de forma descontrolada. As beatas olhavam-me com
um ar reprovador, mas desta vez em nem quis saber. Quando ia começar a descer
as escadas um homem abordou-me com um sorriso. “Lena és tu?” Eu olhei-o
rapidamente, mas não consegui decifrar quem era. Respondi que sim com um tom de
voz assustado. “Sou o João, morávamos na mesma rua quando éramos jovens.” Assim
que eu ouvi as suas palavras as minhas pernas tremeram de tal forma que acabei
por torcer um pé. Ele ajudou-me a sentar na escadaria e contou-me um pouco da
sua vida. Lembram-se quando eu disse que aos 20 conformava-me que tinha perdido
uma batalha sem nunca ter tentado vencê-la, pois bem, o João era a minha
batalha. Foi o meu amor da juventude, amava-o secretamente, mas ele era tão
popular lá no bairro que eu sempre achei que era bom demais para mim. E agora o
destino faz-nos cruzar passado 44 anos sem mais nem menos? E eu aqui nesta
linda figura, com um pé torcido por não me aguentar nos saltos. Resumimos
rapidamente as nossas vidas, estávamos os dois viúvos, ambos com filhos e uma reforma
pela frente. Ele disse que estava com pressa, mas ajudou-me a descer a
escadaria e acompanhou-me à porta de casa. Agradeci-lhe a sua atenção.
Despediu-se, mas antes de seguir o seu caminho perguntou-me se eu não queria
jantar com ele no próximo fim-de-semana, nesse instante passaram-me 10
respostas diferentes na cabeça para depois abanar a cabeça de forma afirmativa.
Ele sorriu e disse-me que depois falaríamos com mais calma, e seguiu o seu
caminho.
Entrei em casa e senti-me como
uma jovem de 20 anos apaixonada. Liguei o rádio e dancei ao som das músicas que
iam passando naquela estação. Nem me tinha apercebido o quanto estava feliz
naquele dia. Durante essa semana comprei novas roupas, nova maquilhagem, fui ao
cabeleireiro, cuidei de mim por todos os anos que nada fiz pela minha
aparência. Até fiz mudanças em minha casa, renovei alguns pormenores na
decoração e dei tudo aquilo que não gostava. Quando o dia chegou, as horas
passavam e não havia sinais do João. Estava cheia de fome mas não queria
acreditar que o jantar não iria acontecer. Esperei durante 2 horas até que
cansei-me de esperar. Atirei os sapatos contra a parede e enquanto fazia uma
omelete as lágrimas escorriam no meu rosto. Até que a campainha toca. E eu com
a cara borrada corri para abrir a porta. No fundo das escadas do prédio estava
o João, segurava uma garrafa de vinho e um ramo de flores. Desta vez era ele
que falava baixinho e perguntava se podia subir. Desta vez eu não hesitei,
respondi prontamente que sim. Ele explicou-me antes de entrar que teve que
levar o seu neto às urgências do Hospital e só agora é que conseguiu deixar o
menino em casa.
Desde esse dia que eu e o João
somos inseparáveis. Expliquei-lhe tudo sobre mim, os meus medos, a minha
personalidade e como tenho encarado a vida. Ele carinhosamente disse-me que eu
dei o primeiro passo, agora ele está comigo para me ajudar a dar todos os
outros até ao topo.
Tenho conhecido novas pessoas,
criei novos laços, faço ginástica e pinto tantas telas quanto posso. Amo e sou
amada. Mas não se iludam. Muitas vezes tenho tendência a fugir, arranjar
desculpas quando estou menos confortável… Na maioria das vezes penso em
desistir quando as dificuldades aparecem, começo a tentar justificar que não
vou conseguir fazer isto ou aquilo… Afinal a Lena das desculpas não podia
simplesmente desaparecer. Sei perfeitamente que o meu caminho ainda vai a meio,
mas compreendi que vale muito mais mil complicações e um pouco de insegurança
do que viver uma vida conformista sem nunca conhecer o que é realmente a
felicidade. Viver na sua plenitude não é fácil mas eu estou preparada para esta
luta.
Por: Natacha Figueiredo
Contos para avós: Uma vida de desculpas
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