Foi no dia 9 de Janeiro de 1939 que nasceu Catarina Avelar. A menina que cresceu no Tramagal sonhava sair da sua aldeia e vir viver para a capital. Começou por recitar poesia em pequenos palcos até que teve a oportunidade de vir estudar no Conservatório. Hoje conta com 59 anos de carreira e facilmente nos lembramos de personagens suas quer no Teatro, Televisão ou Cinema. Aos 78 anos, Catarina Avelar aceitou o convite da REVIVER para uma conversa na esplanada sobre a sua vida e o seu percurso profissional.
- O que as pessoas
não sabem sobre a Catarina Avelar?
Muita coisa, só sabem aquilo que
eu deixo. Às vezes inventam coisas, mas isso já é um problema delas. Estreei-me
em 1957, tenho feito de tudo, desde Teatro, Cinema e Televisão. Fiz muitos
recitais de poesia desde o Conservatório. Sou viúva, tenho dois filhos e cinco
netos. O resto é a minha vida que é minha.
- Que momentos guarda
na memória da criança reservada que cresceu no Tramagal? A sua personalidade
mudou muito desde esse tempo, visto ser uma criança muito tímida e reservada?
É uma coisa engraçada, na altura
e a caminho da adolescência eu achava que era muito infeliz. E hoje olho para
trás e digo que belos tempos. Quando eu era menina era uma princesa. Eu tinha o
sonho de sair do meio pequeno. Muitas vezes sonhava que vinha para Lisboa de
comboio. No sonho havia muitos comboios estacionados na estação e eu entrava
num, o comboio começava a andar e chegava o revisor que dizia que aquele
comboio não ia para Lisboa, ia para outro lado completamente diferente e eu já
não podia sair. Era um sonho recorrente. Tirando esse sonho de adolescente, as
recordações são boas. Quanto à personalidade mudou, mas se me perguntar porquê,
não sei responder. Talvez a profissão me levasse a “abrir” mais. Os atores
normalmente são pessoas tímidas e reservadas, que precisam do palco para uma
exposição, existe essa necessidade. E talvez fosse isso, embora continue a ter
o meu eu muito reservado, mas sou mais aberta.
Eu tinha uma voz muito dramática e fiz logo um papel dramático na minha
estreia. E por tanto só fazia dramas, mas o meu sonho era fazer comédia. E eu
pensava para mim que nunca iria conseguir fazer e hoje só me dão comédias. Um
sonho frustrado que eu tenho, eu gostava de saber cantar, dançar e ser uma
actriz com essa polivalência, mas na escola na altura não havia isso. Gostava
de ser mais completa, embora tenha feito drama, comédia, farsa e já fiz
revista. Por exemplo há uma actriz que eu vou sempre ver os seus filmes mesmo
que não prestem para nada, é a Meryl Streep, aprendo sempre qualquer coisa. E
penso era assim que eu gostava de ser quando fosse grande.
- Ainda jovem teve um
tempo sem estudar e deixou de parte a ideia de um dia tornar-se médica. O que é
que foi mais complicado gerir nesses anos na sua aldeia?
Era um sonho de criança ser
médica, já o meu pai queria que eu fosse professora. Mas nesse tempo o mais
complicado de gerir era o meu sonho de vir para a cidade grande como dizem os
brasileiros.
- Um mundo novo
abriu-se para si numa festa da rádio em Abrantes. Como é que surgiu o interesse
na declamação de poesia e no teatro?
Os companheiros da Alegria
percorriam o país todo e foram a Abrantes. Era Verão, e a minha companheira
Maria Dulce andava a dizer poesia do José Régio e eu fiquei fascinada. E não é
que lá em casa havia esse livro do José Régio, que a minha irmã tinha e eu nem
sabia. E comecei a aprendê-lo sem dizer nada a ninguém. Depois um dia disse há
minha irmã que já sabia aquele poema, ela disse ao meu tio e foi o primeiro
poema que eu disse num teatro amador. E foi assim que tudo começou.
- A Sra D. Maria
Bastos Duarte Ferreira ofereceu-lhe a oportunidade de vir estudar para o
conservatório. Este gesto de bondade foi a possibilidade de realizar um sonho?
Sim se não fosse ela o meu pai não me deixaria vir. Havia um
grande respeito por aquela família no Tramagal. Ela escrevia peças e nós
fazíamos os espetáculos e o dinheiro era para a casa da criança. Eu comecei a
fazer aí os papéis pequeninos, papéis infantis, e ela gostava de mim e do que
eu fazia. E ela disse ao meu pai que se responsabilizava por mim e ele desde
que ela se responsabilizasse deixou-me vir. Caso contrário teria sido muito
difícil.
- Sonhava em
pertencer à companhia do Teatro Nacional. E o sonho acabou por se concretizar
pouco tempo depois de acabar o conservatório. Como se sentiu ao ser convidada
pela grande Amélia Rey Colaço para juntar-se à sua companhia de Teatro?
Eu comecei a fazer televisão
antes de fazer Teatro. Eu estreei-me na primeira peça da RTP ainda andava no
conservatório. A primeira peça foi o Monólogo do Vaqueiro com o Ruy de
Carvalho, mas já aí eu entrei embora não falasse. A RTP tinha nessa altura
várias rúbricas de Teatro, para além das variedades, e a primeira grande peça
foi o Mar de Miguel Torga onde eu fazia a ingénua como se dizia na altura. Só
depois disso é que fiz o exame do Conservatório, que era em direto, e os exames
do Conservatório eram um evento cultural nessa altura. Casa cheia no Teatro
Nacional Dona Maria II, iam os empresários mas também ia o público. E acontecia
também, mesmo antes do exame, a sua dona Amélia quando precisava de pessoas ia
ao conservatório, por tanto eu já tinha um pé lá dentro, eu e os meus colegas.
Quando fiz o exame, eramos três finalistas, e claro que a sua dona Amélia e o
senhor Robles Monteiro estavam a assistir, assim como outras pessoas do Parque
Mayer, e quando acabamos o exame e estávamos à espera das notas e alguém foi-me
dizer que a sua dona Amélia tinha pedido para eu ir ter com ela. Ela deu-me os
parabéns e perguntou-me se eu queria ir para a companhia. Agora imaginam o que
era isto para uma miúda de 18 anos ouvir isto. Era um sonho, um deslumbramento.
E depois deram-me um papel bastante forte, na peça “As Bruxas de Salem de
Arthur Miller, quando eu estava a ensaiar apetecia-me fugir, aquilo era
demasiado forte para mim. E o papel era bastante bom o que foi um brindezinho
que me foi dado de bandeja para início da carreira.
- Esteve vários anos
no Teatro Nacional. Qual foi o momento mais caricato que viveu em cima de um
palco?
Eu estive 7 anos seguidos na
companhia da primeira vez. Quando eu sai do Teatro Nacional houve um incêndio.
Eu agora vou vos contar uma anedota em relação a mim. Eu sou Católica e naquela
altura eu pertencia às Conferências de São Vicente de Paulo na Igreja de São
Domingos e os meus colegas com ternura diziam que eu era beata. Entretanto eu
sai e o incêndio deu-se logo de seguida, então corria a anedota: “A Amélia
deitou uma beata fora e é claro que o Teatro ardeu todo!”. E depois regressei
ao Teatro Nacional passado alguns meses após a sua reabertura em 1978 e lá
fiquei até 2000. Quanto aos momentos caricatos, vivi tantos. Logo no início da
carreira, na peça “O Diálogo das Carmelitas” eu fazia uma rapariga fidalga, com
fatos da época, e depois ia para um convento como freira carmelita descalça. Eu
entrava na cena anterior e havia um camarim que era no palco e eu tinha que
tirar as meias brancas, os sapatos, os canudos, as ancas e eu tinha um cinto de
ligas azul-bebé cheio de rendinhas, eram duas pessoas a ajudar-me a tirar e a
vestir o hábito. Eu entrei na frente do telão e tinha que fazer uma
movimentação com a Teresa Mota, e sinto cair qualquer coisa aos meus pés, e só
pensava no que teria sido mas não me mexia. A Teresa muito aflita e eu não fiz
movimentação nenhuma, fechou-se a cortina eu dei um passo para o lado tinha o
cinto de ligas azul-bebé cheio de rendinhas aos pés caído e eu vestida de
freira. Agora imaginem uma freira com aquele cinto de ligas. Esta ficou muito
presente na minha memória.
- Existiu uma luta profissional para que reconhecessem o seu mérito
durante estes 59 anos de carreira ou tudo acabou por surgir naturalmente com o
tempo?
Logo à partida dando o papel que
me deram de estreia e os seguintes é porque acreditaram em mim. E acabou por
ser tudo assim.
- Mesmo sendo uma pessoa reservada é conhecida por ser bastante ativa
na luta pelos seus direitos e dos seus colegas. Qual foi a primeira vez que
sentiu que não podia ficar calada? E na sua opinião, o que é que facilmente
poderia ser melhorado?
Pois tive no sindicato muitos
anos e cada vez estou mais desiludida com essa parte da minha profissão, não
temos defesa nenhuma, só temos deveres. Mas também precisamos da outra parte.
Eu fui delegada sindical, fui da comissão de trabalhadores e havia jogos e
coisas que não podia pactuar e a minha vida já estava de uma maneira que eu
perguntava o que é que eu estou aqui a fazer. E desisti. É mau. Eu não vou cair
no extremo de me vender mas também já dei a minha parte. Não sou eu que sou
boazinha, paro mas continuo a achar que as coisas podiam ser de outra maneira.
O que poderia ser melhorado, tudo. Principalmente a maneira de pensar.
Começou-se a confundir liberdade com vale tudo. É preciso ter liberdade, mas é
preciso ter valores.
- Conforme a idade
vai avançando o trabalho como atriz vai diminuindo, mas mesmo assim a Catarina
tem conseguido ter alguns papeis regularmente. Sente que existe alguma discriminação
em relação à idade na televisão e no cinema?
Teatro há muito pouco. Em
televisão houve uma época recente que só se escrevia para gente nova, carinhas
larocas. Eu via novelas brasileiras e eu via famílias, mães, pais, avós, há
actores de 90 anos a representar. Mas por acaso no outro dia dei-me ao trabalho
de pensar em colegas da minha geração e já havia um núcleo bom de pessoas a
trabalhar, dos 70 aos 80 e tal. Talvez não seja discriminação, mas é preciso
vender, os actores mais novos também vendem revistas, os mais velhos não. Mas
seja como for acho que isso está a mudar. As pessoas continuam a lembrar-se de
mim e a chamarem-me.
- O que é que ainda
falta fazer a nível profissional?
Eu acho que nos falta sempre
tudo. Mas o canta, dança e representa não se deve ir realizar, embora tenha
feito um pouco disso no Passa por mim no Rossio. Quanto ao que falta fazer, depende
dos projetos, quero projetos que diga olha papel tão bom e faz-se. Quero fazer
coisas que não tenham nada haver comigo. Se houver um trabalho que eu possa
libertar-me um pouco do meu eu.
Paz, sossego que não tenho muito e poder trabalhar. A parte
material é importa mas conviver com os meus colegas e mesmo com gente mais
nova. Eu acabei o Massa Fresca e eram uns miúdos ótimos, umas colegas ótimas
onde eu gostei muito de estar. Eu não preciso estar só em casa, como dona de
casa, eu preciso de falar da minha profissão, tentar ajudar, conviver, isso é
muito importante para mim. Se eu continuar a ter isso enquanto poder, enquanto
tiver cabeça para o fazer, já é muito e é óptimo. Eu decoro cada vez com mais
facilidade por tanto quero continuar a trabalhar.
- Que sonhos ainda
existem por realizar aos 78 anos?
Se eu fosse rica gostava de viajar muito. Mas já me custa
andar de avião muitas horas. Já fiz umas viagens grandes, Japão, Nova Iorque,
principalmente em trabalho. Gostava de ir a outros lados mas são muitas horas,
Austrália, Argentina mas são muitas horas. De resto é ter paz, saúde, poder
continuar a trabalhar e que a minha família esteja toda bem e eu os tenha à
minha volta.
- Se o Mundo
estivesse calado a ouvi-la o que diria?
Pensem. Deixem de ser egoístas, o mundo não são vocês,
são os outros do lado.
Na esplanada com Catarina Avelar
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